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sexta-feira, 6 de junho de 2014

"Mistérios Insondáveis" de Alcione Araújo

O poder da razão nos enche de genuíno orgulho. É extraordinária a capacidade humana para compreender o mundo em que vivemos - da minúscula intimidade da matéria aos espaços infinitos do cosmo, da inteligência artificial ao uso das células-tronco. É tamanha a empolgação com a capacidade de compreender as miraculosas elaborações da razão que, às vezes, somos instilados a crer que não há limites para o conhecimento - o que, de fato, parece não existir - e nós alçamos a extremos nos quais a soberba ultrapassa a própria razão. 

Inflados pela onipotência, passamos a viver como senhores da natureza e deuses da razão. Nesses momentos, humildade deixa de ser apenas uma virtude e passa a ser uma necessidade - até para ajustar pesos e contrapesos e restaurar o equilíbrio. 

A despeito das fantásticas conquistas da ciência, a espécia humana convive com mistérios tão insondáveis quanto essenciais à vida. É quase alarmante que a vida siga seu curso sem que possamos balbuciar qualquer verdade sobre questões que nos acompanham do nascimento à morte.

O nascimento, para começar é um mistério. Nada sabemos como e quando a vida se instala. Além do absurdo acaso implícito num determinado espermatozoide, entre milhões, fecundar o ovo e resultar num ser e não noutro, inteiramente distinto - o que nos define como um acaso da natureza, ao qual se junta o aleatório da programação celular detectado pela biologia genética. Somos, enfim, um acaso do acaso. Ademais, quase todo o saber clínico sobre o nascimento apoia-se em estatísticas e estudos de caso - não no conhecimento do momento decisivo onde tudo começa. Vivemos no mistério do nosso surgimento.

Noutro extremo, a morte - sabemos o que leva ao colapso de órgãos e sistemas, mas nada sabemos sobre o que ocorre após o repouso cerebral - instala-se nos inescrutável domínio da fé. No âmbito do conhecimento, é puro mistério. Sabemos que a vida, tudo o que somos e deixamos de ser, se dá entre o nascimento e a morte, nossos limites. E nada sabemos sobre os próprios extremos determinantes da vida entre si.

Mencionei a seara inescrutável da fé - eis outro mistério. Sabemos que muitas pessoas têm fé - vários tipos, em vários revelações -, mas não sabemos dizer o que seria a fé. Santo Agostinho, que a chamava de esperança, considerava-a um privilégio - ou seja, não é para todos! E reiterava essa ideia como quase um paradoxo. Dizia o santo das Confissões que quem entendeu Deus está longe da verdade, porque Deus não é acessível pela razão. Que mistério a fé! Sem ironia, para ter fé é preciso crer, antes, na fé - que não se dispõe ao entendimento. 

Mais prosaico e rotineiro, porém não menos misterioso e intrigante, é o sonho. Desde as remotas civilizações nos primórdios da espécie que o homem quer entender os sonhos. O Talmude, o Corão e a Bíblia estão repletos de interpretações dos sonhos. No início do século XX, Freud, com A interpretação dos sonhos, lançou alicerces da teoria da subjetividade. Mas é uma interpretação entre outras. Dormimos todas as noites com o desconhecido sonho.

E o que sabemos do amor? Como surge, de que se constitui? Sabemos que são complexos impulsos subjetivos, vindos de recônditos obscuros, mas não conseguimos defini-lo. Pode-se se escolher, com critérios da razão, um marido, uma esposa, pode-se criar parcerias e conveniência e pode-se acomodar afinidades, mas não pode escolher a quem se ama. O amor brota por si e como um mistério.

Há outros, muitos outros, mistérios que nos cercam. Lembro só mais um, com o qual convivo dia e noite: a arte. Para o que é a arte, de que se constitui e a que serve, não há respostas conclusivas, todas giram em torno de conceitos - talvez pela falta de uma teoria geral da emoção, outro mistério! Por lidar com a criação, a arte propõe paradoxos, que não respondem, mas nos distraem do seu próprio mistério, como o de Jean Cocteau: "A arte é indispensável, se ao menos soubéssemos para quê."

(Crônica escrita por Alcione Araújo para o jornal Estado de Minas, retirada do livro "Cala a boca e me beija")

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