Personagens:
Galileu Galilei
Andrea
D.Sarti
Ludovico Marsili
Procurador
1. Galileu Galileu, professor de
matemática em Pádua, quer demonstrar o novo sistema Coppernicano do Universo.
O fogo no rabo da idéia pegou
No ano de mil seiscentos e nove,
O cientista Galileu por a+b
calculou
Que o sol não se mexe. Que a
terra se move.
(Quarto de estudo de Galileu, em
Pádua; o aspecto é pobre. É de manhã, o menino Andrea, filho da governanta,
traz um copo de leite e um pão)
Galileu – (Lavando
o tórax, fungando e alegre) Põe o leite na mesa, mas não fecha os livros.
Andrea - Seu Galileu, minha mãe disse que, se nós
não pagarmos o leiteiro, ele vai dar um círculo em volta de nossa casa e não
vai mais deixar o leite.
Galileu - Está errado, Andrea; ele "descreve um
círculo".
Andrea -Como o senhor quiser, seu Galileu. Se nós
não pagarmos, ele descreve um círculo.
Galileu - Já o oficial de justiça, o seu Cambione,
vem reto para cima de nós, escolhendo qual percurso entre dois pontos?
Andrea (rindo) - O mais curto.
Galileu - Bom. Eu tenho uma coisa para você. Veja
atrás dos mapas astronômicos.
(Andrea pesca atrás dos mapas, de
onde tira um grande modelo do sistema ptolomaico, feito de madeira)
Andrea -O que é isso?
Galileu - É um astrolábio; é feito para mostrar como
as estrelas se movem à volta da Terra, segundo a opinião dos antigos.
Andrea -Como?
Galileu - Vamos investigar, e começar pelo começo: a
descrição.
Andrea - No meio tem uma pedra pequena.
Galileu - É a Terra.
Andrea - Por fora tem cascas, uma por cima da outra.
Galileu - Quantas?
Andrea - Oito.
Galileu - São as esfera de cristal.
Andrea - Tem bolinhas , pregadas nas cascas.
Galileu - As estrelas.
Andrea - Tem bandeirinhas, com palavras pintadas.
Galileu - Que palavras?
Andrea - Nomes de estrelas.
Galileu - Quais?
Andrea - A bola embaixo é a Lua, é o que está
escrito. Mais em cima é o Sol.
Galileu - E agora faça mover o Sol.
Andrea (Move as esferas) - É bonito. Mas
nós estamos fechados lá no meio.
Galileu - É, foi o que eu também senti, quando vi
esta coisa pela primeira vez. Há mais gente que sentem assim também. (Joga a toalha Andrea para que ele lhe
esfregue as costas) Muros e cascas, tudo parado! Durante dois mil anos a
humanidade acreditou que o Sol e as estrelas do céu giram em torno dela. O
papa, os cardeais, os príncipes, os sábios, capitães, comerciantes, peixeiras e
crianças da escola, todos achando que estão imóveis nessa bola de cristal. Mas
agora nós vamos sair para fora dela, Andrea, para uma grande viagem. Porque o tempo
antigo acabou, e agora é um tempo novo. Já faz cem anos que a humanidade está
esperando alguma coisa.
As cidades são estreitas, e as cabeças também. Superstição e peste. Mas agora, veja o que se diz:
se as coisas são assim, assim não vão ficar. Tudo se move, meu amigo.
Gosto de
pensar que tudo tenha começado com os navios. Desde que há memória, eles vinham
se arrastando ao longo da costa, mas de repente, deixaram a costa e exploraram
os mares todos.
Em nosso
velho continente nascia um boato: existem continentes novos. E agora que os
nossos barcos navegam até lá, a risada é geral nos continentes. O que se diz é
que o grande mar temido é uma lagoa pequena. E surgiu um grande gosto pela
pesquisa da causa de todas as coisas: saber por que cai a pedra se a soltamos,
e como sobe a pedra que arremessamos. Não há dias em que não se descubra alguma
coisa. Até os velhos e os surdos puxam conversa para saber as últimas
novidades.
Já se
descobriu muita coisa, mas há mais coisas ainda que poderão ser descobertas. De
modo que as novas gerações têm o que fazer.
Em Siena,
quando moço, vi uma discussão de cinco minutos sobre a melhor maneira de mover
blocos de granito; em seguida, os pedreiros abandonaram uma técnica milenar e
adotaram uma disposição nova e mais inteligente das cordas. Naquele lugar e
naquele minuto fiquei sabendo: o tempo antigo passou, e agora é um tempo novo.
Logo a humanidade terá uma idéia clara de sua casa, do corpo celeste que ela
habita. O que está nos livros antigos não lhe basta mais.
Pois onde
a fé teve mil anos de assento, sentou-se agora a dúvida. Todo mundo diz: é,
está nos livros -, mas agora nós queremos ver com nossos olhos.
As
verdades mais consagradas são tratadas sem cerimônia; o que era indubitável,
agora é posto em dúvida. Em conseqüência, formou-se um vento que levanta as
batinas brocadas dos príncipes e prelados, e põe a mostra pernas gordas e
pernas de palito, pernas como as nossas pernas. Mostrou-se que os céus estavam
vazios, o que causou uma alegre gargalhada.
Mas as
águas da terra fazem girar as novas rocas, e nos estaleiros, nas casas de
cordame e de velame, quinhentas mãos se movem em conjunto, organizadas de
maneira nova.
Predigo
que a astronomia será comentada nos mercados, ainda em tempos de nossa vida.
Mesmo os filhos das peixeiras quererão ir às escolas. Pois os habitantes de
nossas cidades, sequiosos de tudo o que é novo, gostarão de uma astronomia
nova, em que também a Terra se mova. O que contava é que as estrelas estão
presas a uma esfera de cristal para que não caiam.
Agora
juntamos coragem, e deixamos que flutuem livremente, desancoradas e elas estão
em grande viagem, como as nossas caravelas, desancoradas e em grande viagem.
E a Terra
rola alegremente e volta do Sol, e as mercadoras de peixe, os comerciantes, os
príncipes e os cardeais, e mesmo o papa, rolam com ela. Uma noite bastou para
que o universo perdesse seu ponto central; na manhã seguinte, tinha uma
infinidade deles. De modo que agora qualquer um pode ser visto como centro, ou
nenhum. Subitamente há muito lugar. Nossos navios viajam longe. As nossas
estrelas giram no espaço longínquo, e mesmo no jogo de xadrez, agora a torre
atravessa o tabuleiro de lado a lado. Como diz o poeta: "Ó manha dos
princípios!..."
Andrea - "Ó manhã dos inícios!...
Ó sopro do vento
Que vem de terras novas!"
O senhor devia beber o seu leite,
porque daqui a pouco chega gente.
Galileu - Você acabou entendendo o que eu te
expliquei ontem?
Andrea - O quê? Aquela história de Quipérnico e da
rotação?
Galileu - É.
Andrea - Não. Porque o senhor quer que eu entenda? É
muito difícil, e eu ainda não fiz onze anos, vou fazer em outubro.
Galileu - Mas eu quero que também você entenda. É
para que se entendam essas coisas que eu trabalho e compro livros caros, em
lugar de pagar o leiteiro.
Andrea - Mas eu vejo que o Sol de noite não está
onde estava de manhã. Quer dizer que ele não pode estar parado! Nunca e jamais.
Galileu - Você vê! O que é que você vê? Você não vê
nada! Você arregala o olho, e arregalar o olho não é ver. (Galileu põe
a bacia de ferro no centro do quarto) Bom, isto é o Sol. Sente-se
aí. (Andrea se senta na única cadeira; Galileu está de pé, atrás dele) Onde
está o Sol, à direita ou à esquerda?
Andrea - À esquerda.
Galileu - Como fazer para ele passar para a direita?
Andrea - O senhor carrega a bacia para a direita,
claro.
Galileu - E não tem outro jeito? (Levanta
Andrea e a cadeira do chão. Faz meia-volta com ele) Agora, onde é que
o Sol está?
Andrea - À direita.
Galileu - E ele se moveu?
Andrea - Ele, não.
Galileu - O que é que se moveu?
Andrea - Eu.
Galileu (berrando) - Errado! Seu burro! A
cadeira!
Andrea - Mas eu com ela!
Galileu - Claro. A cadeira é a Terra. Você está em
cima dela.
D.Sarti (que entrou para fazer a cama e assistiu a
cena) - Seu Galileu, o que o senhor está fazendo com o meu menino?
Galileu - Eu o estou ensinando a ver.
D.Sarti - Arrastando o menino pelo quarto?
Andrea - Deixa, mamãe. Você não entende disso.
D. Sarti - Ah, é? Mas você entende, é isso? Está um
moço aí fora, ele quer aulas particulares. Muito bem vestido, e trouxe uma
carta de recomendação. (entrega a carta)
Com você o meu Andrea ainda acaba dizendo que dois mais dois são cinco. Ele
confunde tudo o que o senhor diz. Ontem à noite ele me provou que a Terra dá
volta no Sol. Está convencido de que isso foi calculado por um tal Quipérnico.
Andrea - Senhor Galileu, o Quipérnico não calculou?
Diga a ela o senhor mesmo!
D. Sarti - Mas é verdade mesmo que o senhor ensina
essas bobagens? Depois ele vai e fala essas coisas na escola, e os padres vêm
me procurar, porque ele fica dizendo coisas que são contra a religião. O senhor
devia ter vergonha, Senhor Galileu!
Galileu (tomando café) - Dona Sarti, com base em nossas pesquisas e
depois de violenta disputa, Andrea e eu fizemos descobertas que não podemos
mais ocultar do mundo. Começou um tempo novo, uma grande era, em que viver será
um prazer.
D. Sarti - Sei. Eu espero que nesse tempo novo, Senhor
Galileu, a gente possa pagar o leiteiro. (Apontando
a carta de recomendação) O senhor me faça um favor, e não mande embora esse
também. Eu estou pensando na conta do leiteiro. (sai)
Galileu (rindo) - Vai, vai, me deixe ao
menos acabar o meu leite! (voltando-se para Andrea) Alguma coisa
ontem nós sempre compreendemos, hein?
Andrea - Eu só falei para ela se espantar. Mas não
está certo. A cadeira onde eu estava, o senhor a virou só de lado, e não
assim (faz um movimento com o braço de cima para baixo)Senão eu
tinha caído, e isso é um fato. Por que o senhor não virou a cadeira para
frente? Porque daí ficava provado que eu cairia da Terra, se ela virasse assim.
Isso é que é.
Galileu - Mas se eu lhe demonstrei...
Andrea - Mas essa noite eu descobri que toda noite
eu ficaria pendurado de cabeça para baixo, se a Terra virasse como o senhor
diz. E isso é um fato.
Galileu (pegando uma maça na mesa) - Bom.
Isto é a Terra.
Andrea - Ah, não, seu Galileu, não pegue esses
exemplos. Assim o senhor sempre se sai bem.
Galileu (pondo a maça no lugar outra vez) -
Você é quem sabe.
Andrea - Com exemplos a gente sempre se sai bem,
sendo esperto. Mas eu não posso carregar a minha mãe na cadeira como o senhor
me carrega. O senhor está vendo que o exemplo é ruim. E se a maça for a Terra,
o que acontece?
Galileu (ri) - Você não quer saber.
Andrea - Pegue a maça de novo. Como é que à noite eu
não fico pendurado de cabeça para baixo?
Galileu - Bom, isso é a Terra, e você está
aqui. (tira uma lasca de um toro de lenha e finca na maça) E
agora a Terra gira.
Andrea - E agora eu estou de cabeça para baixo.
Galileu - Porquê? Olhe com atenção. A cabeça, onde
está?
Andrea (mostrando) - Aqui, embaixo.
Galileu - O quê? (gira em sentido contrário, até a
primeira posição) A cabeça não está no mesmo lugar? Os pés não estão
mais embaixo? Quando eu viro, você acaso fica assim?(tira e vira a lasca)
Andrea - Não. E porque é que eu não percebo que
virou?
Galileu - Porque você vai junto. Você e o ar que está
em cima de você e tudo o que está sobre a esfera.
Andrea - E porque parece que é o Sol que sai do
lugar?
Galileu (gira novamente a maça com o graveto) -
Debaixo de você, você vê a Terra, sempre igual, que fica embaixo e para você
não se move. Mas agora, olhe para cima. Agora é a lâmpada que está em cima da
sua cabeça. Mas agora, se eu giro, agora o que é que está sobre a sua cabeça e
portanto no alto?
Andrea (acompanhando o giro) - A
lareira.
Galileu - E a lâmpada onde está?
Andrea - Embaixo.
Galileu - Taí.
Andrea - Essa é boa. Ela vai ficar de boca
aberta.
(Entra
Ludovico Marsili, moço rico)
Galileu – Isto aqui parece a casa da sogra
Ludovico – Bom dia, meu senhor. O meu nome é Ludovico
Marsili.
Galileu - (Examinando a sua carta de recomendação) O
senhor esteve na Holanda?
Ludovico – Onde ouvi falar muito no senhor.
Galileu – A sua família tem propriedade na Campanha?
Ludovico – Minha mãe queria que eu me arejasse um pouco,
visse o que se passa pelo mundo, etc.
Galileu – E na Holanda o senhor ouviu dizer que na Itália,
por exemplo, me passo eu?
Ludovico – E como minha mãe deseja que eu me oriente um
pouco nas ciências...
Galileu – Aulas particulares: dez escudos por mês.
Ludovico – Muito bem, senhor.
Galileu – Quais são seus interesses?
Ludovico – Cavalos.
Galileu – Hum...
Ludovico – Eu não tenho cabeça para as ciências, Senhor
Galileu.
Galileu – Hum. Nesse caso, são quinze escudos por mês.
Ludovico – Muito bem, Senhor Galileu.
Galileu – As aulas serão de manhã cedo. Vai ser às suas
custas, Andrea, não vai sobrar tempo. Você entende, você não paga.
Andrea – Já estou saindo. Posso levar a maça?
Galileu – Leve.
(Andrea sai)
Ludovico – O senhor vai precisar de paciência comigo.
Principalmente porque nas ciências tudo é diferente no que manda o bom senso. O
senhor veja, por exemplo, aquele tudo estranho que estão vendendo em Amsterdam.
Eu examinei com cuidado. Um canudo de couro verde e duas lentes – uma assim (Representa uma lente côncava) e uma
assim (Representa uma lente convexa). Ou
vi dizer que uma aumenta e a outra diminui. Qualquer pessoa razoável pensaria
que se compensam. Errado. O tubo aumenta as coisas cinco vezes. Isso é que é a
ciência.
Galileu – O que é que o tubo aumenta cinco vezes?
Ludovico – Torres de igrejas, pombas; tudo o que está
longe.
Galileu – O senhor mesmo viu essas coisas aumentadas?
Ludovico – Sim, senhor.
Galileu – E o tubo tinha duas lentes? (Galileu faz um esboço no papel) Era assim? (Ludovico faz um gesto que sim) De quando é essa invenção?
Ludovico – Quando viajei na Holanda acho que não tinha mais
que uns dias ao menos de venda.
Galileu (Quase
amável) – E por que é que precisa ser a física e não a criação de cavalos?
(Entra
D.Sarti, sem que Galileu perceba)
Ludovico – Minha mãe acha que um pouco de ciência é
necessário. Hoje todo mundo toma o seu vinho com ciência, o senhor sabe.
Galileu – O senhor podia escolher uma língua morta ou
teologia. É mais fácil. (Vê D.Sarti)
Bom, nos veremos terça-feira de manhã.
(Ludovico
sai)
Galileu – Não precisa me olhar desse jeito. Eu vou dar
aulas.
D. Sarti – Só porque você me viu a tempo. O procurador da
universidade está aí fora.
Galileu – Faça-o entrar, que este é importante. Podem ser
quinhentos escudos. Daí eu não preciso de alunos.
(D. Sarti
faz entrar o procurador, Galileu aproveita para acabar de se vestir e rabiscar
números num papel)
Galileu – Bom dia, me empreste meio escudo. (Entrega a D.Sarti a moeda que o procurador
havia pescado em sua bolsa) Dona Sarti, mande Andrea ao oculista para
comprar duas lentes; as medidas estão aqui.
(D. Sarti
sai com o papel)
Procurador – Eu vim tratar do seu pedido de aumento; o senhor
quer ganhar mil escudos. Infelizmente, o meu parecer não será favorável. O
senhor sabe que os cursos de matemática não garantem freqüência à universidade.
A matemática, por assim dizer, não é uma arte nutritiva. Não que a República
não a tenha na mais alta conta. Embora ela não seja tão necessária como a
filosofia, nem tão útil quanto a teologia, aos conhecedores ela proporciona
infinito prazer!
Galileu – (Mexendo
em seus papeis) Meu caro amigo, com quinhentos escudos eu não vivo.
Procurador – Mas, Senhor Galileu, o senhor tem duas horas de
aula, duas vezes por semana. O seu extraordinário prestígio lhe traz quantos
alunos quiser, gente que pode pagar aulas particulares. O senhor não tem alunos
particulares?
Galileu – Senhor eu tenho demais! Eu ensino e ensino, e
quando é que eu estudo? Homem de Deus, eu não sei tudo, com os moradores da
Faculdade de Filosofia. Eu sou estúpido. Eu não entendo nada de nada. De modo
que eu sou forçado a preencher os buracos do meu saber. E quando é que eu tenho
tempo? Quando é que eu faço pesquisa? Meu senhor, a minha ciência ainda tem
fome de saber! Sobre os maiores problemas nós ainda não temos nada que seja
mais do que hipótese. Mas nós exigimos provas. E como eu vou fazer progresso,
se para sustentar a minha casa sou forçado a me dedicar a qualquer imbecil,
desde que tenha dinheiro, enfiar na cabeça dele que as paralelas se encontram
no infinito?
Procurador – Em todo caso, o senhor não esqueça que a
República talvez não pague tanto enquanto certos príncipes, mas garante a
liberdade de pesquisa. Nós em Pádua admitimos até mesmo alunos protestantes. E
lhes damos o diploma de doutor. Quando provaram – provaram, Senhor Galileu –
que Cremonini dizia coisas contra a religião, nós não só não o entregamos à
Inquisição, como aumentamos o salário dele. Até na Holanda se sabe que Veneza é
a República onde a Inquisição não manda. E isso tem um certo valor para o
senhor, que é astrônomo, que trabalha numa disciplina em que há muito tempo a
doutrina da Igreja não encontra mais o devido respeito!
Galileu – Mas Giordano Bruno os senhores entregaram a
Roma. Porque defendia a doutrina de Copérnico.
Procurador
– Não porque ele difundisse a
doutrina do Senhor Copérnico, que aliás está errada, mas porque ele não era
veneziano, nem tinha emprego aqui. De modo que o senhor deixe o queimado-vivo
fora do jogo. E, entre parênteses, por maior que seja a liberdade, é prudente
não falar tanto nem tão alto nesse nome, que é anátema oficial para a Igreja;
nem mesmo aqui, sim, senhor, nem mesmo aqui.
Galileu – Essa vossa proteção à liberdade do pensamento
não é mau negócio, hein? Vocês sugerem que noutra parte a Inquisição reina e
queima, e vocês arranjam, assim, professores bons e mal pagos. A garantia
contra a Inquisição, vocês se pagam dela, pagando os piores salários.
Procurador – É injusto! Injusto! De que lhe serve o tempo
livre, o seu tempo de pesquisa, se um monte ignorante da Inquisição for livre
também de proibir as suas idéias? Não há rosas sem espinhos, Senhor Galileu,
não há príncipes sem monges!
Galileu – E de que serve a pesquisa livre sem o tempo para
pesquisar? E com os resultados, o que acontece? Quem sabe um belo dia o senhor
mostra aos cavalheiros do Conselho esta pesquisa sobre a lei da queda dos corpos
(mostra um maço de papeis), e
pergunta se isto não vale uns escudos a mais.
Procurador – Vale infinitamente mais, Senhor Galileu.
Galileu – Infinitamente não, senhor, quinhentos escudos.
Procurador – Vale escudos somente
o que rende escudos. Se o senhor quer dinheiro, precisa produzir outras coisas.
O senhor não pode cobrar mais pelo saber que vende, do que ele rendea que o
cobra. Por exemplo, a filosofia que o Senhor Colombo vende em Florença rende
pelo menos dez mil escudos anuais ao príncipe. A sua lei da queda dos corpos
levantou poeira, é verdade. O senhor é aplaudido em Paris e em Praga. Mas as
pessoas que o aplaudem não pagam o que o senhor custa à Universidade de Pádua.
A sua desgraça, prezado Galileu, está na sua especialidade.
Galileu – Eu entendo: liberdade de comércio, liberdade de
pesquisa. Liberdade de comerciar com a pesquisa, é isso?
Procurador
– Mas, meu caro Galileu, que
maneira de ver as coisas! O senhor me permita dizer que não entendo bem as suas
ironias. Eu não vejo por que desprezar a prosperidade comercial da nossa
República. E como procurador da universidade que sou, há muitos anos, não
acompanho também essa maneira, digamos frívola, de falar da pesquisa (Galileu lança olhares nostálgicos à sua
mesa de trabalho) O senhor considere a situação lá fora! Pense no chicote
que escraviza a ciência em certas cidades! Nessas cidades, rasgaram o couro de
velhos livros para isso, para fazer chicotes. Não querem saber como a pedra
cai, mas o que Aristóteles escreveu a respeito. Os olhos a gente os têm só para
ler. Para que estudar a queda dos corpos, se conta só o jeito de cair de
joelhos? No outro prato da balança, o senhor ponha a alegria infinita com que a
nossa República acolhe as suas idéias, por mais ousadas que sejam! Aqui o
senhor pode pesquisar! O senhor pode trabalhar! Ninguém vigia os seus passos,
ninguém o oprime! Os nossos comerciantes, que lutam contra a concorrência
florentina, sabem quanto vale um pano de melhor qualidade, e, em conseqüência,
ouvem-no com simpatia quando o senhor reclara “uma física melhor”. Aliás, a
própria física deve muito ao clamor por um tear melhorado! Os nossos cidadãos
mais eminentes têm interesse pelas suas pesquisas, vêm visitar o senhor, pedem
que lhes demonstre as suas descobertas, gente cujo tempo é precioso. Meu caro
Galileu, não despreze o comércio. Aqui não se admite interferência alguma em
seu trabalho, nenhum incompetente lhe cria dificuldades. Admita, Galileu, que
aqui o senhor pode trabalhar!
Galileu (desesperado) – Como não?
Procurador – E quanto às condições materiais : o senhor faça
outra coisinha bonita, como aquele seu excelente compasso proporcional, que
mesmo ao leigo em matemática permite (conta
os dedos)tirar linhas, determinar o juro do juro de um capital, reproduzir
em escala ampliada ou diminuída a planta de um imóvel, estabelecer o peso das
balas de canhão.
Galileu – É uma besteira.
Procurador – O senhor chama de besteira uma coisa que
encantou os cidadãos mais eminentes e rendeu dinheiro à vista. Eu ouvi dizer
que o próprio marechal Stefano Gritti é capaz de tirar uma raiz quadrada com o
seu instrumento!
Galileu – De fato, é milagroso! Em todo caso, o senhor me
fez pensar. Talvez eu tenha alguma coisa do gênero que lhe interessa.
Procurador – É? Seria a solução. (Levanta-se) Galileu, nós sabemos que o senhor é um grande homem,
grande, mas insatisfeito, se me permite dizer.
Galileu – Sou, sou insatisfeito, uma razão para vocês me
pagarem mais, se fossem mais inteligentes! Pois eu estou insatisfeito comigo
mesmo. Mas, em vez disso, vocês fazem tudo para que eu fique insatisfeito com
vocês. É verdade, meus senhores de Veneza, que eu gosto de usar o meu engenho
no vosso famoso arsenal,nos estaleiros e na fundição de canhões. O arsenal põe
questões à minha ciência, que a levariam mais adiante, mas vocês não me dão
tempo de especular. Vocês amarram a boca ao boi que está trabalhando. Eu tenho
46 anos e não fiz nada que me satisfizesse.
Procurador – Nesse caso, eu não vou incomodá-lo mais.
Galileu – Obrigado.
(O
Procurador sai. Galileu fica sozinho por alguns instantes e começa a trabalhar.
Andrea entra correndo)
Galileu – (Trabalhando)
Por que você não comeu a maça?
Andrea – É pra ela ver que ela gira.
Galileu – Andrea, ouça aqui, não fale aos outros de nossas
idéias.
Andrea – Por quê?
Galileu – Porque as autoridades proibiram.
Andrea – Mas é verdade.
Galileu – Mas proibiram. E nesse caso tem mais. Nós físicos
ainda não conseguimos provar o que julgamos certo. Mesmo a doutrina do grande
Copérnico ainda não está provada. Ela é apenas uma hipótese. Mas passe as
lentes.
Andrea – O meio escudo não deu. Deixei o meu casaco de
penhor.
(Pausa.
Galileu arruma as lentes sobre a folha em que está o esboço.)
Andrea – O que é uma hipótese?
Galileu – É quando uma coisa nos parece provável, sem que
tenhamos os fatos. Veja a Felicia, lá embaixo, na frente do cesteiro, com a
criança no peito. É uma hipótese que ela dê leite à criança e que não seja o
contrário; é uma hipótese enquanto eu não puder ir lá, ver de perto e
demonstrar. Diante das estrelas, nós somos como vermes de olhos turvos, que
vêem muito pouco. As velhas doutrinas, aceitas durante mil anos, estão
condenadas; há mais madeira na escora do que no prédio enorme que ela sustenta.
Muitas leis que explicam pouco, enquanto que a hipótese nova tem poucas leis
que explicam muito.
Andrea – Mas o senhor provou tudo para mim.
Galileu – Não. Eu só mostrei que seria possível. Você
compreende, a hipótese é muito bonita e não há nada que a desminta.
Andrea – Eu também quero ser físico, Senhor Galileu.
Galileu – Acredito, considerando a infinidade de questões
que resta esclarecer em nosso campo. (Galileu
foi até a janela, e olhou através das lentes. O seu interesse é moderado) Andrea,
dê uma olhada.
Andrea – Virgem Maria, chegou tudo perto. O sino de
campanário, pertinho. Dá pra ler até as letras de cobre: Gratia Dei.
Galileu – Isto vai nos render quinhentos escudos.